O calor que se faz sentir impede-nos de brincar lá fora.
São assim as tardes de verão da minha infância. No fresco da sala de costura da minha avó, eu e a minha irmã olhamos pela vidraça da janela as árvores imóveis, sem a mais pequena brisa com quem dançar. O sol brilha baixo e dá à água do ribeiro um tom prateado, que faz lembrar o lago do presépio lá de casa – aquele que o pai faz aparecer no meio do musgo com um pedacinho de papel de alumínio e vidro.
“Meninas, apetece-vos fazer colares?”, diz com aquela voz doce que só em avó se consegue ter. Nada podia apetecer mais para passar o tempo – o nosso e o dela. E era quase como abrir um tesouro, estarmos ali em frente àquela caixa de costura tão grande, repleta de compartimentos e pequenas gavetas habitadas por missangas e botões de todas as cores e feitios. Linhas finas e linhas grossas à espera de serem desenroladas para se tornarem numa outra coisa – qual lagarta prestes a tornar-se borboleta!
Lembro-me como se fosse hoje da sensação de mergulhar os dedos na gavetinha das pérolas e de os ver desaparecer naquele mar de cores, tão macio. Depois, completamente ao acaso, escolher uma para começar. E, para a minha avó Deolinda – nome perfeitamente ajustado ao seu rosto de atriz de filmes americanos – a nossa escolha é sempre a mais acertada. “Isso mesmo, filha, vai ficar tão bem no colar que vamos fazer para a mãe”.
Com os dedos pequeninos é fácil agarrar as pequenas pérolas que, sempre soubemos, não vieram das ostras do Mar do Norte, mas sim da retrosaria do Sr. Artur, uma das lojas mais antigas da vila – com fachada de azulejo e interior de naftalina.
Pérola atrás de pérola, missanga atrás de missanga, os colares vão ganhando forma enquanto o tempo passa sem urgência, preenchido de histórias que a minha avó gosta de partilhar – quase todas com personagens reais que nós nunca conhecemos e, como tal, imaginamos conforme nos apetece.
Lá fora, o pátio vai ficando coberto de sombras da videira e sabemos que está na hora de arrumar tudo de forma quase religiosa. Uma fatia de bolo de canela e um copo de leite fresco aparece-nos à frente quase que por magia. E eu tenho para mim que esta combinação é a melhor de sempre, melhor ainda do que requeijão com doce de abóbora ou banana com manteiga de amendoim.
Naqueles dias, o melhor estava sempre por chegar. Comer pêssegos da árvore, doces e ainda quentes. Descobrir novos caminhos de bicicleta. Brincar aos supermercados com as caixas vazias de cereais que a avó ia guardando ao longo do ano. O banho de mangueira cá fora, ao fim da tarde.
Tudo tinha um toque mágico, um tom pastel, um travo doce, o som de uma caixa de música, a textura de uma gaveta cheia de pérolas coloridas. A certeza de que tudo é possível. E é preciso crescer para percebermos isso. Mas crescer com o olhar curioso de quem vê um tesouro numa velha caixa de costura.
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Fez agora três anos que partiste, avó. Na altura, passei vários meses a pensar que não nos tínhamos despedido. Agora percebo que não era suposto. Estou sempre a encontrar-me contigo. Basta-me regressar àquelas tardes da minha infância.
Obrigada avó.
Que texto tão bonito Catarina. Tão bom recordarmo-nos dos nossos avós com esse carinho 😊 😘
Obrigada Kelly!
A minha avó é de facto uma doce recordação 🙂
Beijinho